A sobremesa francesa nos últimos 60 anos.

Imprimir | Enviar para um amigo

Giana Cristina Coró – História UFPR
Orientador: Prof. Carlos Roberto Antunes dos Santos 

Os clássicos profiteroles, mousses e crêpes, assim como os não tão convencionais, mas tão apreciados crèmes brulées, petits gâteaux e macarons são algumas das muitas sobremesas consumidas no Brasil, que teriam origem na França. Não apenas a gastronomia, mas a sobremesa francesa é conhecida, admirada e reproduzida mundialmente. Em um País onde a alimentação não apenas faz parte da cultura, mas é o maior representante dela, a sobremesa tem um papel tão importante quanto o do prato principal nas duas grandes refeições e nos hábitos alimentares da população francesa. No entanto, a tradicional França do “bien manger” (comer bem), das refeições completas e compostas por no mínimo entrada, prato principal e sobremesa (quando esta última não é precedida por uma porção de queijo), passou por um período de grandes evoluções nos últimos sessenta anos.

A partir da década de sessenta, a industrialização revoluciona a sociedade francesa: das práticas domésticas à diversidade de produtos alimentares disponíveis ao consumo. Desde então as casas estão cada vez mais equipadas e a presença constante da mulher no lar se justifica a cada dia menos. Com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e a chegada da grande distribuição, o francês passa a dedicar menos tempo a cozinhar e a comer, e isto fomenta ainda mais a indústria agro - alimentar. Aos poucos o fast food passa a fazer parte desta nova sociedade francesa, da mesma forma que os produtos prontos para o consumo conquistam o mercado alimentar. Passamos do artesanal ao industrial; do “feito em casa” ao “feito rapidamente”. As mulheres se tornam cada vez mais ativas na sociedade e também grandes consumidoras. Passamos pela ditadura da “magreza”, pelo mercado da saúde e chegamos à venda do prazer; à reconciliação do gosto com o saudável e da satisfação com o bem-estar. Durante este período e processo, um dos atuais maiores setores alimentícios franceses inovou constantemente e cresceu de forma surpreendente: o grande mercado nacional do leite. Entre iogurtes, cremes e tantas outras sobremesas à base de leite, uma enorme gama de produtos chega aos supermercados e à mesa da população francesa.

Esta foi a França e o cenário no qual viveu o personagem principal deste trabalho: a sobremesa. Partindo do princípio de que as práticas e os hábitos das populações influenciam enormemente na sua alimentação, e de que as mulheres têm um papel primordial na preparação deste prato, o consumo da sobremesa sofreu então grandes transformações durante o período analisado. Segundo inúmeras fontes a sobremesa mostrou ser um prato extremamente flexível, mas imprescindível nas refeições e na vida dos franceses. Das grandes criações do grande gastrônomo Antonin Carême (1800) à atual pâtisserie (confeitaria) francesa que toca a perfeição, a sobremesa atravessou épocas, evoluiu, se transformou, mas se perpetuou como puro sinônimo de satisfação. Texturas, temperaturas, formas, sabor, leveza, delicadeza, assim como charme, encanto, nostalgia, convívio e prazer definem a sobremesa francesa da atualidade. Cruzando a história das práticas, os diversos modos de fabricação e os diferentes tipos de sobremesa, foi possível definir qual o papel dela na alimentação do francês dos anos cinqüenta aos dias de hoje, e qual a sobremesa consumida durante este período. 

A análise dos periódicos “Elle” e “La Vie du Rail”, por exemplo, e das sobremesas propostas por estas fontes durante o período pré-determinado, contribuíram sobretudo no entendimento de qual era (e qual é) a sobremesa do cotidiano dos franceses. De acordo com estas duas revistas, que focam respectivamente o público feminino e as famílias daqueles que trabalhavam na estrada de ferro francesa, as mulheres dos anos cinqüenta ainda permaneciam em suas casas, e as sobremesas, nesta época, eram simples e preparadas principalmente em domicilio (mesmo que a indústria da sobremesa já desse seus primeiros passos e que os anúncios publicitários da época já divulgassem alguns entremets, puddings e flans nos sabores baunilha, chocolate e café). Desde então as frutas eram evocadas como sinônimo de saúde. Nos menus das revistas da época, as sobremesas de frutas eram as mais propostas; tratava-se de sobremesas clássicas e de preparo pouco complicado: laranjas, maçãs ou peras ao forno, ao kirsch (bebida alcoólica à base de cereja) ou pochées; geléias, compotas, etc. As sobremesas à base leite ainda não eram as mais numerosas, já que a indústria do leite ainda daria sua grande arrancada, mas elas já eram consumidas de forma pronunciada. Entre elas estavam o arroz doce (riz au lait), os fromage blancs, os iogurtes e os cremes (principalmente em sabor baunilha); sobremesas que de alguma forma já teriam a participação da indústria. A pâtisserie, maior símbolo da sobremesa francesa, aparecia como a sobremesa do domingo. Igualmente simples, os confeitos (doces que têm necessariamente uma massa como base) dos anos cinqüenta eram bastante tradicionais e pouco elaborados. Os crêpes eram constantemente sugeridos, assim como os sonhos, as charlottes e as tortas – sobremesa dita familiar. A sobremesa de Natal da época era a bûche (doce cujo formato e decoração assemelham-se a um tronco ou galho de árvore) de marrons (castanha) e de chocolate, como roga a lenda e a tradição francesa.

A partir dos anos sessenta as mudanças das práticas influenciaram fortemente a escolha da sobremesa pelos franceses. O desenvolvimento da industria agro – alimentar, a possibilidade de estocagem dos alimentos frescos, e a chegada da grande distribuição, associadas às novas demandas dos franceses, que ja têm um ritmo de vida muito mais acelerado, resultou em uma grande oferta e consumo de sobremesas industrializadas. Passamos pela criação de novos sabores, pela descoberta de certos produtos alimentares, pela democratização e possibilidade de escolha de sobremesas antes não existentes, e chegamos à massificação e à homogeneização da alimentação. As sobremesas industrializadas são de fácil acesso e passam a fazer parte do cotidiano dos franceses. Assim, a qualidade nutricional da alimentação dos franceses diminui e teme-se mesmo a perda dos hábitos tradicionais dos franceses de comer bem, da "art de vivre".

Condicionada pela velocidade da vida e pela industrialização, a sobremesa varia e evolui também por outros fatores. Nos anos sessenta e setenta a onda do emagrecimento se impõem sobre a sociedade francesa. A partir de então as francesas passam a escolher suas sobremesas também segundo a quantidade de calorias que elas têm e não somente em função do gosto ou da preferência de suas crianças . Mas o “proibido” e a sobremesa “0%” não dura muito e nos anos noventa a França reconcilia o gosto e o equilíbrio – saúde, alimentação e prazer passam a ser todos primordiais. Contrariamente ao que se tinha previsto, os comportamentos tradicionais se mantêm. A refeição feita em casa se mantém e essas refeições são compostas de no mínimo dois pratos. Mesmo se a doçura do fim das refeições dos anos noventa se dê por meio de flans de caramelo e cremes brulées industrializados, os franceses continuam comendo habitualmente uma sobremesa no final de suas refeições.

Em função das mudanças no contexto, os tipos de menus propostos pelas revistas da época, assim como as sobremesas propostas por eles, também mudaram. Se na década de cinquenta eram propostas sobremesas simples para o cotidiano, em 1985 estas revistas propõem sobremesas especificas para as recepções, outras para a noite entre amigos, outras para os domingos, outras para o “dia seguinte”, para o almoço de família, etc. De toda maneira as sobremesas à base de fruta se consagram como a sobremesa do dia-a-dia. Além das frutas propostas anteriormente são propostas outras já disponíveis no mercado, e as sobremesas francesas clássicas como a Pêche Melba e a Poire Belle-Hélène são citadas algumas vezes mas elas não são sobremesas comuns do dia-a-dia. Já as sobremesas lácteas, como cremes (disponíveis em diversos sabores) e iogurtes são largamente consumidos pelos franceses nas ultimas décadas. Em função de sua praticidade e grande diversidade, eles invadem as geladeiras dos franceses e são consumidas amplamente e diariamente.
Nos menus específicos para emagrecimento as frutas nunca aparecem nos domingos; este dia é reservado para um "pequeno prazer", ou seja uma pâtisserie. O consumo ou a proposição de "confeitos" ainda é importante nos domingos, mas ela se tornou menos característica deste dia. Seguindo a tendência, as pâtisseries também podem ser compradas prontas nos grandes mercados, e mesmo as revistas aconselham o uso das massas congeladas compradas prontas. Alguns dos doces dos anos cinquenta desapareceram ou são atualmente menos propostos, enquanto que outros se mantêm e se mostram clássicos. Os sonhos, assim como os rissoles doces e o pain perdu aparecem cada vez menos entre as pâtisseries da época; as éclairs (bombas), o quatre-quarts, o savarin e o rochers fazem aparições raras. Já as crêpes estão sempre presentes, assim como os clafoutis, a charlotte e a bûche para o natal. Outras sobremesas clássicas como o baba, a tarte Tatin e os profiteroles são evocados algumas vezes, mas também não são sobremesas do cotidiano dos franceses. O que se percebe facilmente é que continuamos a produzir ou consumir as mesmas sobremesas, mas em novos sabores ou parfums. O clafoutis, que era originalmente à base de cerejas, pode desde então, ser de pêras, as charlottes de morango ou chocolate podem ser de rosas, de laranjas, etc.

A confeitaria artesanal francesa, tão tradicional, tão respeitada e respaldada mundialmente também teve que se ajustar à nova sociedade, às novas realidades e aos discursos que evoluíam. Através do “Journal du Pâtissier”, revista criada pela Confederação Nacional dos profissionais do ramo no fim da década de setenta, foi possível observar uma grande inquietude do setor devido à invasão dos hipermercados e a chegada da confeitaria industrial. Mesmo que o produto produzido pelo artesão seja diverso e particular, a industrialização democratizou e mesmo banalizou a confeitaria. Assim, nos anos oitenta, a confeitaria destes profissionais viu-se obrigada a progredir e a inovar no objetivo de não perder seu lugar e sua clientela. Motivada e impulsionada pela própria industrialização e seus novos equipamentos, produtos e técnicas, a confeitaria artesanal acabou evoluindo enormemente no fim do século. A pâtisserie francesa torna-se então cada vez mais diferenciada e os profissionais tornam-se criadores artistas. O design, as belas embalagens e a estética tornam-se primordiais na confeitaria, o visual sendo a cada dia mais importante. Neste contexto de inovação, novos sabores são empregados, assim como novas combinações de sabores, formas e texturas. Além disso, a confeitaria francesa acompanha também a Nouvelle Cuisine e sua prefência pela leveza, pela gosto puro e pronunciado do fresco e do natural e se torna ainda mais delicada e refinada.

Ainda no âmbito profissional, os restaurantes de alto nível seguiram a mesma tendência. Analisando as proposições dos restaurantes três estrelas do Guia Michelin durante o período  determinado, pôde-se perceber não apenas que as sobremesas se tornaram cada vez mais frequentes entre as especialidades dos mesmos, mas que se tornaram também cada vez mais gastronômicas, detalhadas, leves e criativas. Os sonhos, tartes Tatin, assim como as inúmeros crêpes dos anos sessenta e setenta não aparecem mais entre as sobremesas dos grandes restaurantes após os anos oitenta. Agora que os meios permitem novas criações e invenções e que o público se tornou cada vez mais exigente, as sobremesas se modernizam; mesmo se algumas se tornam tradicionais e estão sempre presentes, como o soufflé. Cada vez mais utilizamos novos perfumes e mesmo temperos jamais antes utilizados em sobremesas. O anis, as frutas ditas exóticas, o mascarpone, assim como o cardomomo, o azeite de oliva, entre tantos outros sabores inusitados.

Ao mesmo tempo em que a confeitaria industrial impulsionou a artesanal ou de "butique" ao progresso e à inovação, parece que esta realidade de uma imensidão de produtos transformados, de homogeneização alimentar, e de um ritmo de vida acelerado trouxe aos franceses a vontade do tradicional, do clássico e sobretudo do prazer. Assim, a sobremesa simples, a sobremesa “feita em casa”, como gosto de infância são procurados e muito apreciados atualmente. A sociedade francesa está cada vez mais consciente de sua saúde; ela não faz mais sobremesas em casa diariamente (mesmo que ela queira), mas ela continua a "se dar prazer" terminando suas refeições com a doçura das sobremesas. Comer continua sendo um dos grandes prazeres da vida dos franceses; o convívio, o momento compartilhado e o consumo de uma sobremesa continuam sendo sinônimo de prazer.

A sobremesa é finalmente um prato muito flexível, que pôde se adaptar às condições e aos discursos de diferentes épocas, assim como à evolução do gosto da população francesa. Com o passar dos anos criamos sobremesas de preparo rápido e fácil, sobremesas que não sejam caras e sobremesas pouco calóricas. Propusemos receitas simples, ao mesmo tempo em que criativas e apetitosas que permitissem aos gulosos (apressados ou não) de "se dar" sempre prazer. De toda forma, o francês continua associado à "gourmandise", no melhor sentido que a palavra "gula" pode ter, da mesma forma que ele prefere a sobremesa simples e tradicional, que resiste à moda. Mesmo se por um ou outro motivo algumas delas foram deixadas de lado, a sobremesa simples, hoje, é vedete. Ela é constantemente "revisitada". Revisitada no sentido de que a confeitaria artesanal de butique, assim como os restaurantes estrelados propõem, atualmente, frequentemente as sobremesas clássicas e tradicionais. Em entrevista, chefs renomados da escola Cordon Bleu, ou responsáveis de grandes pâtisseries e restaurantes estrelados, afirmaram que o público francês comtemporâneo procura por novidade e tradição: se possível, reunidos em um mesmo doce, em um mesmo momento. Sobremesas tradicionais com novos sabores. Perfumes pouco comuns dão um toque de modernidade a estas sobremesas que evocam ao mesmo tempo gosto de infância e desejo de inovação. Revistas, livros, menus de restaurantes, assim como os profissionais da profissão exprimem todos esta tendência; esta é a sobremesa francesa da atualidade. Ela reune história e tradição, emoção e prazer, beleza, sabor e perfeição.



 

2004 - história da alimentação - termos de uso - mapa do site - contato - faq