19/11/2010 | Comida de tropeiro.
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Autor: Sebastião Nascimento
Fotos: Roberto Seba
Fonte: http://revistagloborural.globo.com

Paçoca com carne-seca, frango de romaria, mocotó cozido, arroz com pato, içá frita - tem de tudo no restaurante do Ocílio, em Silveiras, SP

Roberto Sebba

Jorge Totó, 51 anos, filho e neto de tropeiros, confere se o frango e a carne para a paçoca não foram esquecidos
Aos 72 anos, Ocílio José Azevedo Ferraz é um apaixonado pela rica cultura popular do Vale do Paraíba, região abraçada por belas serras no interior paulista e que faz divisa com dois estados, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Escritor (seis livros publicados), sociólogo, é o ofício de cozinheiro, porém, que o faz realizado e feliz. A diferença de Ocílio em relação ao modismo de parte da culinária que frequenta as rodas atuais está no casamento perfeito que ele faz entre a comida e a história do povo simples. Como os nômades tropeiros do ciclo aurífero, que saíam de Diamantina, MG, no século XVIII, com ouro e prata no lombo de burros e faziam parada nos então ranchos erguidos para recepcioná-los. Depois rumavam para o porto de Paraty, no Rio de Janeiro, onde as pedras preciosas eram embarcadas rumo à Europa. Esse roteiro é conhecido por Trilha do Ouro.

E há ainda os romeiros a carregar sua fé pelas estradas na veneração a Nossa Senhora, em Aparecida do Norte, e que vão orar também a Nossa Senhora da Santa Cabeça, em Cachoeira Paulista. Todos eles admiravam a paçoca de carne-seca salgadinha ou o franguinho caipira fácil de preparar, de carregar pelo caminho e muito saboroso, o “frango de romaria e dos tropeiros”. Para os tropeiros, a comida tinha de ser seca e durável, já que as viagens eram longas.


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O franguinho colocado pelos nômades nos alforjes antes de pegar a Trilha do Ouro, entre Ouro Preto, MG, e Paraty, RJ
“As tropas que traziam o ouro vinham com dez, 20 burros. Antes das estradas de ferro, e muito antes dos caminhões, o comércio em geral era feito pelos tropeiros e suas mulas. Eles apeavam nos pequenos povoamentos ao longo da jornada para descanso, troca de burros, compra de mercadorias e para comer. Os mineiros, por sinal, deixaram por herança um prato que virou símbolo: o feijão tropeiro. As misturas pedidas para acompanhar o feijão, seja dos que vinham das lavras das Gerais ou de outras direções, eram o frango e a carne-seca”, relata Ocílio. Segundo ele, os viajantes se fartavam, ouviam música e depois desapareciam novamente nas montanhas com a matula (comida) devidamente acomodada nos alforjes. “Pelas estradas, ao reacender a fome, os homens estendiam folhas de bananeiras sobre cestas de taquara, colocavam sacos alvinhos por cima e amoleciam a comida em água quente.”

“As comitivas passavam por aquela trilha ali”, aponta Ocílio para um caminho de roça e terra batida, quase à porta do restaurante Fazenda do Tropeiro, de comidas regionais, que ele mantém em Silveiras, um centenário e mítico ponto de passagem das tropas. “Silveiras de rancho virou um vilarejo e depois cidade. Isso ocorreu com diversas outras localidades do Vale do Paraíba. Eu costumo dizer que todo vale-paraibano tem ramificações nessas comitivas de gente audaciosa.” Um dos antepassados de Ocílio, por sinal, Anacleto Ferreira Pinto, era comprador de burros em Sorocaba, SP. “Ele trazia centenas - uma vez vieram 400 animais - e esperava as tropas aqui em Silveiras para fazer negócio. Isso faz do tropeirismo minha essência.” Em Silveiras, formou-se então um centro de serviços (havia 16 ranchos) com celeiros, ferreiros, cesteiros, cangalheiros, trançadores de couro, domadores, catadores de ferraduras. Era uma efervescência só.

Quem registrou a vida errante e sofrida do tropeiro em suas obras foram o escritor Monteiro Lobato, nascido em Taubaté, e o grande Mazzaropi, que adotou como sua a mesma cidade. Taubaté é considerada por Ocílio a fonte irradiadora da cultura e dos hábitos seculares dos habitantes do Vale do Paraíba.

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A carne é cozida na panela (de preferência, em fogão a lenha) e depois desfiada ainda quente para compor a paçoca
O franguinho caipira é um dos pratos mais requisitados no restaurante do Ocílio. Leva banha de porco, dentes de alho, calda de limão, pimenta-do-reino, cebola e é caprichosamente cozinhado no fogão a lenha pela dona Francisca, uma auxiliar antiga e delicada. Quando sai do fogo, é adicionada farinha de milho ou de mandioca. “É do gosto de cada um a escolha de uma ou de outra farinha.” O restaurante serve ainda, entre outras delícias típicas, paçoca de carne-seca, arroz com urucum, carne à moda da Bocaina (serra que a tropa percorria antes de chegar ao Rio de Janeiro), frango à moda dos moreiras, afogado, mocotó cozido, arroz com pato e pato com pitanga. Cada prato tem sua história – que é contada por Ocílio.

O povo da região gosta demais de uma iguaria que hoje pouco se ouve falar dela nos grandes centros urbanos: a farofa de içá. São formigas do tipo içá, e leva óleo, sal e farinha de mandioca no preparo. Importante: antes da fritura, as asas, as pernas, a cabeça e o ferrão são retirados, permanecendo só a bundinha do içá. Fica crocante. “Em novembro, quando Tupã se enfurece e vêm as trovoadas, as panelas de içá começam a estourar, dando início a uma grande tradição do povo do Vale do Paraíba, que é a caça às içás”, narra Ocílio. E novembro é o mês em que o restaurante promove o Festival da Içá, iguaria alimentar dos indígenas que habitaram o vale.

O livro mais conhecido de Ocílio, que é titular da cadeira 17 da Academia Brasileira de Gastronomia, leva o título de São Paulo – Caminhos da colonização: viagem de tropeiros entre serras. Nele, o cozinheiro historiador mostra que grande parte das famílias do Vale do Paraíba é da árvore dos tropeiros. A trilha do ouro trouxe viajantes de Minas Gerais e muitos se radicaram por lá. Mais tarde, com a decadência da mineração, foi a vez de o “ouro verde”, o café, expandir-se pelo Vale do Paraíba e por Minas Gerais. O ciclo do café também entrou em inexorável declínio.

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Escritor e sociólogo, Ocílio Ferraz se esmera no preparo de quitutes caboclos como a paçoca e o franguinho caipira
Ocílio resume: “O ouro e o café passaram com a riqueza e deixaram pobreza no rastro”. No entanto, brota hoje no vale com força o que ele chama de turismo de cultura. “Chegou para ficar. É notório o incremento do artesanato, da dança, da música e dos restaurantes de comidas típicas na região. Aqui mesmo, n’O Tropeiro, o movimento aumentou mais de 10% de um ano para cá”, diz. Segundo Ocílio, que faz palestras em universidades pelo país afora, com o bolso mais recheado, o brasileiro tem transitado internamente e mostrado interesse em conhecer suas origens.


 

Universidade Federal do Paraná - História da Alimentação