A formação dos corpos: representações sobre corpo e alimentação, no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980.
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Heloise Peratello
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, em 23/03/2011

Resumo:
Os corpos e as práticas alimentares que sobre eles incidem, são os elementos centrais deste estudo,  no qual procuramos entender como a dieta e o cuidado de si assumem significados normativos associados aos saberes que os definem, aos discursos que os legitimam e às práticas que acabam por se tornar cotidianas, dando forma ao objeto da pesquisa: as práticas de regulação e controle alimentar. O tema versa sobre as representações do corpo e da alimentação no Brasil, ao longo das décadas de 1970 e 1980, em reportagens presentes nas revistas Veja e Claudia. Nesta perspectiva, baseamo-nos em uma visão do corpo e da alimentação voltados para o aperfeiçoamento constante e progressivo, a fim de atingir a melhor performance e o melhor desempenho. São corpos marcados pela classe e pelo gênero, e produzidos na convergência da ciência, da mídia, da sociedade de consumo e da exacerbação do olhar.

No conjunto de fontes analisadas, verificamos o importante mecanismo da normatização e da disseminação de padrões médicos e nutricionais. Este tipo de elemento está presente em textos midiáticos e atua como aspecto pedagógico para o aprendizado sobre as regras que regem o peso. Temos, por exemplo, a exploração de quadros genéricos nos quais se imprimem as medidas ideais para corpos diferentes. Percebe-se que, numa mesma reportagem operam um conjunto muito significativo de fatores capazes de dar legitimidade ao tema, por meio do uso de números e medidas fornecidos pela medicina e pela nutrição.
 
Podemos pensar na força disciplinadora que tal atitude impõe aos indivíduos. Não só por normatizar, mas por explorar a ideia de que o corpo opera segundo rígidas regras que podem ser manipuladas e reguladas. Uma vez constituída, a normatização que rege o corpo deixa de ser um poder repressivo e torna-se constitutivo, que cresce e organiza-se. No caso de corpos que já absorveram tal significado, a coerção e a sujeição acabam caracterizando o campo sobre o qual se opera o controle social. Deixa de ser uma imposição de instituições reconhecidas, para se tornar uma coerção subjetiva, individual e constante. A situação de vigilância que se instaura num caso como o controle alimentar e o controle do peso ganham dimensões que tornam o corpo um registro cultural. O corpo que se verifica nas décadas de 1970 e 1980 possui a convergência de discursos libertários e reguladores, demonstrando uma situação típica do período: o corpo autonomamente pensado, mas também um corpo pensado nos limites do controle e dos apelos subjetivos muito pouco espontâneos em relação às práticas e condutas.

Outra situação verificada é a forma como as revistas lidam com as questões relativas às dietas de emagrecimento ao longo das duas décadas analisadas. No início dos anos 1970, as reportagens sobre corpo e dietas faziam parte, majoritariamente, do universo de discursos médicos, não apenas pela forma de relatar as experiências do comer, mas também pelo predomínio destes assuntos em seções chamadas “Medicina” ou “Saúde”. Aos poucos, a dieta passa a ser assunto da seção “Comportamento”. Isto nos leva a crer na mudança de postura em relação à importância da ação individual para a perda ou o ganho de peso. Percebe-se que o estímulo ao controle deve acontecer, por exemplo, sempre que se faz uma dieta. Isto é notado em quase todas as reportagens que ensinam a comer direito, ingerir o número correto de calorias e não sabotar o próprio regime nem quando se está em um restaurante. O corpo controlado da mulher que não se alimenta é palco do embate entre a necessidade fisiológica e a necessidade de elevar ao máximo o grau de disciplina e controle provenientes da total carência de nutrientes. 
                  
No caso da revista Claudia, é possível notar que as representações, tanto no que se refere aos modos de consumo quanto à maneira idealizada da mulher contemporânea refletem uma situação muito típica da segunda metade do século XX em relação à construção das subjetividades. A fragmentação de modelos culturais e referenciais ideológicos fez com que boa parte da identificação simbólica relacionada à construção das subjetividades fosse transportada para os modelos de referência globais. A subjetividade construída com base em valores altamente mutáveis torna-se também, uma subjetividade mutável. Desde que o corpo passou a ser desnudado, a figura feminina foi a mais utilizada, seja para conhecer o corpo ou para fazer dele objeto do olhar. O acesso ao corpo é, pois, uma questão diferenciada pelo gênero. E por assim ser, a subjetividade da mulher está mais associada à aparência de seu corpo, quando comparada à construção da subjetividade masculina.

             Embora não possamos atestar a forma exata como as dietas se aplicavam ao dia-a-dia, podemos depreender que a presença do discurso foi gerada por uma demanda de necessidades prévias compartilhadas por indivíduos ou grupos e foram posteriormente assimiladas. No caso das mulheres, a demanda se torna mais forte, por ser também, uma situação afetada pelas questões de gênero. A racionalização da alimentação é tão antiga quanto o ato de alimentar-se e a construção de uma espécie de utopia ou utopias alimentares sempre procuraram normatizar e formar mais ou menos as escolhas e condutas dos comensais. Tais condutas, por sua vez, sempre estiveram ligadas à instituições. Por isso, o fato do discurso médico ser o responsável por ditar algumas das regras alimentares não é um fato isolado ou atípico. O que diferencia o momento vivido na contemporaneidade em relação aos anteriores é a amplitude e os efeitos de tal interferência.




 

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