DUCROT, V. E. Los sabores del cine. Buenos Aires. Grupo Editorial Norma, 2002.
Uliana Kuczynski
Ao assistir à um filme, seja ele sobre um amor, um crime, um medo, sobre o poder, a trapaça ou a paixão, é difícil quem não se sujeite ao envolvimento para com a história, ou às emoções provocadas por ela, mesmo ciente de que se trata de uma ficção. O cineasta cria um universo para que o espectador possa contemplar, ou até participar dele. O jornalista Victor Ego Ducrot, em seu livro “Los Sabores Del Cine” compara esse poder de criação ao dos deuses da antiguidade. E, além do cineasta, ele levanta outro sujeito capaz de provocar esses mesmos efeitos e criar mundos diferentes. Trata-se do cozinheiro. Figura esta que - aqui será demonstrada no próprio cinema - aparece com atributos de deus. Para revelar tais atributos, Ducrot apresenta uma série de obras nas quais o protagonista é a comida. Toda a trama é circunscrita no ato de comer, nas receitas, restaurantes, cozinhas, cozinheiros...tudo indo muito além do caráter nutricional do alimento, e interferindo nas relações humanas, nos sentimentos, criando e revertendo situações.
O restaurante e a figura do restaurateur (aquele que comanda o restaurante) é ressaltada em O Jantar (1998), de Ettore Scola. Pois no restaurante Arturo al Portico ocorrem vários tipos de relacionamento social, com diferentes tipos de pessoas. Um dos fiéis e assíduos clientes comenta que “o ato de comer é algo que tem mais a ver com o coração que com o estômago; comer é conviver e conviver é viver com os demais”. O restaurateur é o responsável por abrigar aquelas relações; muitos episódios importantes como a filha comunicando seu casamento à mãe, um pai lamentando sobre seus filhos, ou uma mulher contando sobre seus amantes; quando ele não participa efetivamente com opiniões ou apenas ouvindo, é um coadjuvante no viver daquelas pessoas.
Outra representação de caráter social é n’A Festa de Babette (1988), de Gabriel Axel, mas aqui se destaca a influência da comida sobre os comensais. Se passa em meados do séc XIX, numa cidadezinha da Dinamarca. Uma moça francesa é recebida como hóspede das duas senhoras, filhas do falecido patriarca. Na cidade pairam discussões e declarações de tom moralista e fundamentalista que criam uma atmosfera de frieza e intolerância, mas que será quebrada pelo jantar preparado por Babette. Ela (que na verdade é uma verdadeira chef francesa) oferece aos moradores um típico jantar francês com todo o requinte, decoração e sabor que lhe são dignos. Desde o sentar-se à mesa aquele clima vai sendo quebrado e convertido em alegrias e prazeres durante a degustação. No final do jantar todos estão com os laços estreitados e sem rancores e demagogias desnecessárias. Em Chocolate (2000), de Lasse Hallstrom uma cidadezinha fundada no tradicionalismo cristão, muda seu aspecto graças à presença de Vianne Rocher – filha de uma latino-americana e um viajante francês - e sua chocolateria. Primeiramente todos a encaram com desconfiança e um certo distanciamento (também por ser época da quaresma), mas Vianne, ou seus chocolates, acabam conquistando e modificando aquelas pessoas que passam a ser mais doces e a valorizar mais o ser humano que uma série de regras de cunho político e moral. Existe um tipo de chocolate próprio para cada personalidade e circunstância, como o cacau não refinado da Guatemala que revigora a vida sexual de um casal, e o chocolate quente servido à uma senhora carrancuda que acaba tendo Vianne como sua amiga confidente. Ducrot salienta a lenda mexicana da história do chocolate, que é mencionada no filme: a primeira semente de cacau nascera da terra onde a esposa de Quetzalcoatl (deus asteca) foi morta. Ela estava a defender o tesouro da cidade na sua ausência.
A maravilhosa sensação que o chocolate causou naquelas pessoas revela a necessidade do ser-humano pelo prazer. Em outros casos, o prazer do saborear se mistura ao prazer sexual. Ao analisar O cozinheiro, o ladrão, a mulher e seu amante (1989), do inglês Petter Greenaway, o jornalista ressalta a proximidade da gula e do erotismo, prazeres essenciais para a pessoa do gângster sr. Spica. Em seu restaurante de estrutura e decoração faraônicas, e com muita intensidade na provocante cor vermelha, é que ocorre o interesse de sua esposa (Georgina) por um dono de livraria que sempre senta em sua direção para comer e ler. O cozinheiro é um cúmplice nessa história servindo espontaneamente os mesmos pratos especiais para ambos, o que os diferencia e ‘separa’ dos demais. Já a cozinha é um berço para consumarem o caso. O desfecho se dá na morte do amante (encomendada pelo gângster) e culmina com a vingança de Georgina. Ela manda cozinhar o corpo do seu amante e obriga Spica a comer a carne da vítima, como um “ritual antropofágico”, penalizando-o com aquilo que ele mais gostava de fazer: comer. E agora, comendo o fruto do seu próprio crime, como sentença. Sem prazer.
A comida tradicional, preparada por um verdadeiro gourmet defronta-se com os alimentos corriqueiros da atualidade, os fast-foods, sempre atrelados à pressa e ao lucro. O típico cozinheiro tradicional tem um emblemático representante na figura de Primo, em A Grande Noite (1996). Dois irmãos italianos são donos de uma cantina nos EUA dos anos 50. Secondo, o mais flexível, se vê obrigado (e até atraído) a adequar sua cantina ao modo de vida capitalista pra “dar às pessoas o que elas querem, e não o que precisam”, que na verdade é mais a sensação de bem-estar que a comida. Um grande jantar com a presença de um músico famoso é o evento que irá atrair muitos convidados para seu restaurante. Primo não gosta muito da idéia mas acaba aceitando e entretendo-se na cozinha. O convidado de honra acaba não comparecendo, mas na verdade “a grande noite” teve como estrela a comida. Esta sim propiciou satisfação e alegria para os convidados que puderam experimentar um dos pratos italianos mais tradicionais: o Timpano. Ang Lee em Comer, beber, viver (1994) revela esse tradicionalismo no cozinheiro sr Chu, e cujas três filhas representarão a “modernidade”. Em um de seus desabafos ele diz que “em quarenta anos de cozinha chinesa vê todas as comidas se esfumaçando e perdendo sua identidade”; diz também que “hoje, uma bandeja com simples sobras pode se tornar um prato típico chinês”. Ducrot salienta a importância da culinária chinesa enquanto pioneira e dispersora de alimentos tão básicos como o arroz e o tradicional chá, utilizado em cerimônias. O México também é um berço gastronômico que o autor não esquece. Como água para chocolate (1992) mostra os temperos mexicanos pelo viés de um romance, quase que um conto de fadas, em que Tita prepara receitas contendo um teor mágico, causando certas “alucinações” naqueles que comem.
Tão intrigante como o título propõe, A Comilança (1973), de Marco Ferreri, reúne renomados artistas como Marcello Mastroianni em uma casa retirada para passarem uns dias comendo, como de costume. Sim, comendo! Banquetes e mais banquetes chefiados por Ugo (um verdadeiro gourmet) a todo o instante são saboreados e devorados por quatro amigos e ainda por uma professora que leciona na região e agrupa-se à eles. Durante essa verdadeira orgia do paladar, mistura-se também o apetite sexual, e este é alimentado por algumas prostitutas que são requeridas para participar da festa, ainda que seja por pouco tempo, pois não tem estômago suficiente para a comilança. Essa saciedade fica, então, por conta de Andréia (a professora). Esse encontro, porém, terá um diferencial. O quarteto irá se suicidar....mas de tanto comer. Não se sabe a razão, o que vale é que, se vão morrer, que seja fazendo aquilo que mais lhe dá prazer. A morte de Ugo reflete exatamente isso com seu amigo lhe dando comida e Andréia levando-o ao clímax sexual, que culmina na sua morte. Trágico e cômico. Assim nota-se que a arte, união de talento e ofício, é sempre aquilo que causa alguma reação. Seja espanto, felicidade, incógnita, amor, ódio, ou até a morte. Existe por uma razão muito maior do que simplesmente “estar ali”, transmite algo além do que está representado. Com a comida ocorre o mesmo. A necessidade nutricional está contida em algo muito mais abrangente. E perceber isso através da arte cinematográfica é ainda mais fascinante. Traduz o comportamento humano diante desta protagonista, demonstra o significado de comida.
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